Nós

 

Foto de @henrihere de unsplash

     
         A vela está bruxuleante ao lado do pequeno arranjo de flor. A taça sendo servida de água e nós dois nos ajeitando na própria cadeira. À luz da vela ele parece mais velho do que costumava me lembrar. Quando foi que ele ganhou essas linhas no canto dos olhos? Ele me olha com o olhar cansado e a vela faz seus olhos castanhos se parecerem um vulcão. Profundo. Porém adormecido. Algo nele havia adormecido. Algo em NÓS havia adormecido. 15 anos de um "Casamento de Sucesso" e apesar do barulho diário só nos restava o eco. Aonde fomos parar? 
         Ele arruma o guardanapo no colo distraído enquanto me percebo sem nenhum assunto que não seja sobre a casa, os filhos e algo sobre a bateria do carro. Me pergunto novamente: Aonde fomos parar? Aonde foi parar o cara de sorriso fácil e que me fazia rir até o ponto de quase precisar ir ao banheiro? O cara além do pai de família, empresário? Aonde foi para a garota alegre que acordava devagar esperando o colo morno pra mais 5 minutos de sono encaixada no pescoço longo. Eu costumava dizer "Você é mais confortável do que qualquer poltrona cara!" ele ria enquanto tomava o café e lia o jornal. Ele parece cansado demais pra viver a própria essência. Eu olho no reflexo do espelho atrás dele e me vejo: NÓS parecemos cansados demais para viver a própria essência. 
       Eu me sinto exaurida demais pra outro jantar silencioso e vazio. Eu digo "Não me sinto bem, podemos ir embora?”. No momento em que digo isso um clarão aparece no céu seguido de um barulho tão intenso quanto. Uma chuva torrencial começa a cair. Seguimos em direção a porta e parece impossível atravessar até o outro lado da rua. Enquanto pensamos em como vamos resolver isso, um carro em alta velocidade passa sobre uma poça d'água e acaba espirrando água em nós dois e em mais um casal que acabara de chegar. A mulher ao lado fica ensopada e seu cabelo começa a enrolar as pontas. Ela irritada começa a chorar dizendo que por causa de um motorista estúpido o jantar com seus futuros sogros está arruinado. 
          Eu encharcada começo a gargalhar como a muito tempo não fazia. Muito tempo mesmo. Primeiro porque ela não faz ideia de como um casamento pode ser mais desafiador do que molhar um cabelo de prancha. Mas acabo gargalhando mesmo da situação em si. Quanto mais ela chora mais a maquiagem borra, e ela nem viu como o vestido bege dela está todo manchado. E não era como se eu estivesse em uma situação melhor: meu cabelo já está enrolado, e meu vestido "estou casada a 15 longos anos com o mesmo cara (tipo direto, sem nenhuma pausa)" está numa situação pior. Meu marido começa rir alto também, não sei se pelo mesmo motivo que eu. Enquanto me contorço pra frente com a mão na barriga, mania que tenho desde criança, sinto a mão dele me puxar enquanto me diz "Vem!". Atravessamos a rua correndo em direção ao carro rindo alto quando começamos a nos molhar (de novo). Parecia tudo em câmera lenta, mas foi coisa de poucos segundos. Quando entramos no carro, estamos afoitos e respirando pesado pela corrida. Eu o olho nos olhos, e por alguns segundos eu o enxergo ali vivo. Eu me olho no retrovisor e estou com as bochechas coradas e com um resquício de daquela risada escondida no canto dos lábios. Ele me diz: "Meu Deus! Como eu adoro o som da sua risada". E eu suspirando alto digo "Como eu adoro que você me veja rindo!".

Comentários

  1. Outro lindo demais, Luci! Esse merecia estar num livro!

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  2. Affff! Sem condicao! Tao perfeito!

    Um beijo.
    Ha det bra!
    Leidiane Holmedal | leidianesbueno@gmail.com
    Watermelon Curly
    Instagram Watermelon Curly

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  3. Ah! Esse dialogo no final deixa o coracao quentinho.

    Um beijo.
    Ha det bra!
    Leidiane Holmedal | leidianesbueno@gmail.com
    Watermelon Curly
    Instagram Watermelon Curly

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